Conto de Lídia Maria de Melo
Reprodução do jornal A Tribuna, de 27 de julho de 1997, Caderno A T Especial Leitura Página 7. Ilustração de Seri. |
Aos 80 anos, para mais nada era cedo.
Saiu do elevador sorrateiro,
ignorando o chamado da nora pelo interfone e sem cumprimentar o zelador. Assim
evitaria indagações. Estava cansado dos cuidados e da histeria dela no controle
da casa, do filho com os canhotos dos cheques e dos netos pelo computador.
Queria comer tranquilo sua feijoada, tradição sabatina de quem não perdera o
gosto pela vida e seus temperos. Tinha urgência desses prazeres. Já vivia seu
futuro.
E foi pensando nisso que alcançou o
calçadão da praia, antes de escolher o restaurante onde iria almoçar. Com a
nova estação, os chapéus-de-sol já
estavam desnudos e a folhagem formava um tapete para o vaivém indiferente de
rapazes e moças. No seu tempo, melhor dizendo, na sua juventude, porque seu
tempo era agora, só os pedestrianistas
gastavam energia correndo pra lá e pra cá. Agora era uma febre, mas não deixava
de ver beleza naquela coreografia de
corpos exuberantes.
Quando chegou à cidade, 65 anos atrás, pensou que seus canais revestidos fossem córregos domesticados pela artimanha de algum desvairado. Depois descobriu a finalidade sanitária daqueles drenos fincados no solo encharcado e aplaudiu. Agora andavam querendo cobrir esse íntimo artifício geográfico, para criar bolsões de estacionamento. Coisa de gente sem história e sem preocupação com a saúde pública. Fossem buscar solução para os arranha-céus recalcados na orla da praia. Essa providência traria benefício maior à população e à arquitetura.
Quando chegou à cidade, 65 anos atrás, pensou que seus canais revestidos fossem córregos domesticados pela artimanha de algum desvairado. Depois descobriu a finalidade sanitária daqueles drenos fincados no solo encharcado e aplaudiu. Agora andavam querendo cobrir esse íntimo artifício geográfico, para criar bolsões de estacionamento. Coisa de gente sem história e sem preocupação com a saúde pública. Fossem buscar solução para os arranha-céus recalcados na orla da praia. Essa providência traria benefício maior à população e à arquitetura.
Continuou andando sem rumo, apenas pelo deleite do ócio. O filho, a nora
e os meninos deveriam desfrutar dessa preguiça, decerto economizariam o tanto
que gastam para combater o estresse. Nisso ouviu um chamado do outro lado da
rua. Acenou sem mostrar disposição de parar. Era o amigo psiquiatra, que ganhou
notoriedade ajudando almas atormentadas da alta roda, mas não vencia a
frustração de jamais ter conseguido libertar o filho e a filha de sua
jurisdição, como ele mesmo costumava dizer. A moça, que já nem merecia ser assim chamada, pois já
passava dos 50, ainda pedia permissão para sair à noite. O rapaz, um pouco mais
novo, casou, era pai de filhos, mas nunca montou casa própria. Ainda ocupava
cômodos da mansão do pai. “Casa de ferreiro, espeto de vara bem fraquinha”.
Pouco antes de entrar no
restaurante, vasculhou a memória na intenção de encontrar o nome do amigo
psiquiatra. Estava na ponta da língua, mas não desgrudava. Sentou-se, pediu ao
garçom uma caipirinha de pinga e a
feijoada. Do início ao fim do almoço, fez novos esforços, mas só se
recordou de Nico Fidenco, o porco criado pelo pai nos fundos do quintal de casa
e lavado todos os dias para não cheirar mal.
Foi com Nico que começara a duvidar,
aos 10 anos, da teoria de que os bichos eram irracionais. Irracionais eram o
filho, a nora, os netos e todos os que desperdiçavam aquela portentosa tarde de
sol, confinados em apartamentos diante de um computador. Nico atendia aos seus
chamados e respondia às suas falas, grunhindo demoradamente. Sabia que haviam
estabelecido um meio de comunicação. Só se sentia frustrado por não ser capaz
de decifrar o que o amigo de estimação lhe transmitia.
Já adulto, um cão ajudou-o a
reforçar a convicção de que os bichos também raciocinavam. De dentro de um
ônibus parado, acompanhou a primeira tentativa que o animal fez para pular um
muro. Como não conseguiu, ele tomou distância, observou, como se calculasse, e
arriscou novo salto. Diante de outro fracasso, ele se afastou mais ainda e
pulou, aí sim, na altura desejada. Se aquela sequência de ensaios e erros não
expressava uma espécie de raciocínio,
não sabia mais o que era pensar. Como somente os cientistas tinham autoridade
para ditar conceitos dessa natureza, jamais polemizou sobre o assunto. Mas
consigo mesmo preferia seguir a intuição.
Despreocupou-se do nome do amigo. A
lembrança não alteraria o curso daquela tarde. Após pagar a conta, resolveu
retornar por umas ruas internas que ele conhecia de tantos e tantos anos.
Entrou na farmácia da esquina onde costumava se reunir com a garotada, antes de
ganharem os bailes, num tempo que nem o calendário devia mais registrar.
Perguntou por Célio. O balconista
franziu o cenho, constrangido, e disse não conhecer a pessoa que ele procurava.
Não deu o braço a torcer para aquele rapaz ainda imberbe. Decerto era um
distraído. Como podia desconhecer que o Célio fora o proprietário daquele
estabelecimento por anos e anos e atendera os moradores da Vila Hayden e de
outros bairros, quando vinham buscar
ajuda na aflição de uma dor de ouvido, de uma gripe insistente, uma
inflamação de garganta? Ainda quis perseverar, mas o rapaz já se ocupava de um
freguês. Os jovens eram assim mesmo, sem tempo para escutar.
As ruas também já não possuíam o
aconchego da vizinhança, pensou, seguindo em frente, para um instante depois se
surpreender com uma moça de olhos fortes, que caminhava no sentido inverso,
mirando-o com firmeza e comentando para a companheira, sem se importar se ele
podia ouvir: “Que homem bonito! Imagine quando era novo”.
Lisonjeado e encabulado pela atitude que antigamente seria considerada atrevida, por pouco não agradeceu à desconhecida. Havia tempos ninguém o chamava de homem. Perdera a referência de quando passou a ser tratado por idoso, senhor, velho e simplesmente ’vô. Agora, por conta da ousadia daquela jovem, voltava a adquirir o vigor e a dignidade viril. Ainda era um homem. A tarde ganhava mais viço, embora estivesse caindo.
Lisonjeado e encabulado pela atitude que antigamente seria considerada atrevida, por pouco não agradeceu à desconhecida. Havia tempos ninguém o chamava de homem. Perdera a referência de quando passou a ser tratado por idoso, senhor, velho e simplesmente ’vô. Agora, por conta da ousadia daquela jovem, voltava a adquirir o vigor e a dignidade viril. Ainda era um homem. A tarde ganhava mais viço, embora estivesse caindo.
Quando dobrou a esquina de sua rua,
nem se incomodou, como era seu costume, com o avanço voraz dos prédios sobre os
espaços das casas. A disposição deixava-o mais complacente. E mais sensível também. A ponto de se extasiar
perante a cena extemporânea: um vendedor de milho verde apertava com
insistência e ritmo a buzina de seu triciclo, fazendo descer crianças de tudo
quanto era andar dos edifícios próximos, como numa convocação. Salvatori
Tardelli, então, sorriu pleno: “Como nos tempos das casas!”
A tarde se retirava. O aroma das
espigas cozidas afagava-lhe as narinas e a boca se enchia de água. E mais
crianças chegavam, rodeando o vendedor. Entre elas, um dos netos. O menorzinho.
“Como nos tempos das casas!”, repetiu satisfeito. Quando passou pelo porteiro,
cumprimentou-o efusivo, com o sorriso aguçado. Agora, já era noite. E Salvatori Tardelli, um
menino.
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(Escrevi
este conto em 1997 e publiquei no jornal A Tribuna, de Santos/SP, no dia 27 julho de 1997)
Aproveite e lei também o meu conto Bala Perdida.
Aproveite e lei também o meu conto Bala Perdida.
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