Como
um poeta
(Lídia
Maria de Melo)
Zefa é
mesmo que um poeta. Finge. Usa calça jeans e blusa de cambraia com
flores miúdas bordadas na gola. Tem ares de freira, mas fuma. Quando
a vejo na rua ou no supermercado escolhendo produtos para abastecer a despensa
da família, imagino que poderia ser casada com um senhor de meia-idade, um
pouco mais velho que ela, barriguinha saliente sob a camisa de listras suaves e
verticais, mantidas por dentro da calça de tergal. Um homem de óculos, meio
calvo combinaria com ela. Se tivesse sotaque português, também. Se trabalhasse
como caixa de banco, dono de açougue ou até mesmo fosse portuário, desses bem
orgulhosos de seu ofício. Aposentado, talvez, ou já na contagem do tempo para
entrar com o pedido na Previdência Social. Educado, a ponto de ceder o lugar às
senhoras na condução...
Zefa
merecia um companheiro distinto.
Quando
ela abre a porta de seu apartamento térreo, cumprimenta a vizinhança com um
sorriso e uma voz meiga de simpatia, para todo mundo pensar que não é com ela
que o marido grita, não é ela que ele xinga e nem é nela que ele só falta
bater. Se é que não bate, porque ela se cala e ninguém ouve nem vê, embora o
corredor central que separa os dois prédios do condomínio facilite a subida
do som para todos os lados.
Zefa
deve ter mesmo, sem saber, uma personalidade de poeta, de atriz, que dissimula
e convence. Aqueles impropérios expostos, a ferir a dignidade até dos homens
dos apartamentos de lado, de cima e de frente, não podem ser mesmo com ela.
Aquele ser atingido por vômitos de expressões desprezíveis, como ‘‘monte de
bosta’’, ‘‘imbecil’’, ‘‘safada’’, não é ela, aquela mulher de mais de
meia-idade, com varizes nas pernas, óculos de grau, fala de interior, que zela
pela limpeza da casa, oferece café para a faxineira do prédio e préstimos a
quem precisa de ajuda. Uma manhã de segunda-feira, ela atendeu pelo interfone
um pedinte, com a mesma delicadeza com que trata o carteiro, o coletor de lixo,
o filho e esse que deve ser seu marido, mas a destrata tanto que é como se não
fosse.
Toda
vez que acordo sobressaltada com os xingamentos vociferados por aquele homem
alto, vermelho e olhar indecente, que ela chama de Gaúcho e que é mais gentil
com a faxineira do que com a mãe do filho dele, fico a me perguntar por que ela
suporta tamanha humilhação. Será que guarda algum segredo tão incontável que a
faça submeter-se àquela autoflagelação?
As
vidraças de suas janelas brilham, o piso reflete a limpeza e os quadros
ornamentam com harmonia as paredes de sua sala, entrevistas pela cortina
semi-aberta. E em troca da presteza de seus gestos, ela ouve invariavelmente
todos os dias, às vezes de manhã, ao meio-dia, à tarde, à noite ou de
madrugada, ofensas, insultos, descalabros, que incluem um sonoro e escandido: _
Vá tomar no seu cu.
Como
se ela fosse um moleque com quem aquele ser que nem ouso chamar de homem
disputasse uma partida de futebol, num campo de várzea.
Um
amigo, com quem desabafei sobre essa estranha relação, supôs que deve ser o
jeito que ambos encontraram para manter o estado de gozo. Achei cínica demais a
interpretação. Mas não disponho de um refinamento capaz de me fazer entender.
Será que ela inclui entre as suas obrigações a entrega de seu corpo àquele que
nem posso, injustamente, classificar como animal?
Um
dia desses, ele a enxotou de casa, esbravejando que tudo que estava ali era
dele. Chamou-a de burra, de animal, de idiota, de imbecil (sua ofensa preferida,
ao lado de ‘‘monte de bosta’’ e ‘‘vá tomar no seu cu’’). Dessa vez, não gritava.
Parecia atirar cacos de vidro pela boca, na direção da mulher. Cada insulto era
uma faca cravada, com o sangue escorrendo lívido, quente e cru. Uma
crueldade mordaz. A cadela que eles tinham e morreu no mês de setembro recebia
melhor tratamento. Depois de uns 15 minutos, que levaram quase toda a
vizinhança à janela para espiar e ver se daquela vez Zefa reagia e consumava
uma tragédia, mais do que previsível, ela abriu a porta, arrumada com seu jeito
simples, mas de cabelo lavado, banhada, recendendo um cheiro de talco ou
colônia comprada por catálogo em domicílio. Exibia uma dignidade
esculpida pra nunca mais apagar. Lá dentro ele ainda berrava: ‘‘Vai sua
ordinária, o banco já vai fechar. Imbecil! Sua burra! Vagabunda! Su-a
va-di-a!’’
Não
era nada com ela, que passou por mim, perto do portão de entrada, me olhou,
sorriu e desejou boa tarde.
Do
alto de minha indignação, ainda pude chegar perto da porta do apartamento deles
a tempo de ver o tal marido dela sorrir para a faxineira do prédio e perguntar
em voz baixa e gentil: _ Precisa de ajuda?
Quase
regurgitei o almoço. E uma dúvida tomou conta do resto do meu dia e ainda me
atormenta toda vez que a cena de insultos se repete. O que terá havido na vida
dessa mulher que a fez perder o brio,
a auto-estima?
Não
sei a resposta, mas, com a mesma regularidade com que ouve esses desacatos, ela
diariamente se levanta, abre a porta da rua, cumprimenta os vizinhos e vai comprar
pão e leite, carne para o almoço e o lanche da tarde. Também sai
para ir ao banco, pôr o saco de lixo na rua e conversar no portão de entrada do
prédio.
Zefa
parece seguir, do jeito que lhe ensinaram, o ritual da gentileza, da servidão,
da submissão. Da obediência. Toda a vizinhança, inclusive eu, está aguardando o
dia em que acontecerá uma desgraça, no caso dela voltar a si e resolver vingar
tudo o que tem reprimido. Mas o sangue de Zefa não ferve. Talvez seja de
barata. Ou de um verme. Não vibra, nem se exalta. Não reage. Não entra em
combustão, como se não houvesse mais jeito. E ele não pára nunca, porque sabe
que jamais se livrará dela.
Zefa
não se rebela, cumpre a sina. Parece as pontas dos dedos veteranos de um
tocador de viola. Já criou calo. Não sente mais dor.
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